Reflexões dispersas de uma caminhante

Sou uma pessoa de gostos simples: gosto de ler, escrever, caminhar e ouvir música. Então, caminhar enquanto ouço música e escrevo textos e poemas na minha cabeça é a conjugação perfeita. Hoje não nasceu um poema, mas despertou esta crónica que anda há muito tempo a tentar ver a luz do dia.



Faço pouco mais de 8 km em hora e meia. Durante esse percurso, surgem-me várias reflexões.


Saio da minha casa em direção ao Rio Ave e deparo-me com um letreiro de um morador a solicitar que os donos dos cães apanhem os dejetos. De facto, das janelas da minha sala, assisto ao desfile de cães e respetivos donos que, além de despertarem o latir alucinado do cão que mora no apartamento por cima do meu, se vão aliviando pelo caminho, sem respeito pelos outros transeuntes. Os cães, com um QI ligeiramente inferior ao dos proprietários, não podem ser responsabilizados pela falta de decoro que revelam em defecar no meio dos passeios e à vista de todos. Há mais 30 anos, quando fui à Suíça pela primeira vez, já se viam dispensadores de sacos para as necessidades caninas em todo o lado e era impensável que cães e crianças partilhassem locais de recreio, que aqueles confundem facilmente com uma casa de banho. Certos donos mentecaptos não ousam contrariar as tendências dos bichos largarem o seu cocó onde as crianças gostam de correr e saltar. Só posso concluir uma coisa: há muita gente estúpida por aí, à solta, sem trela!


Tenho a sorte de morar pertinho do Rio Ave, como disse. Em cinco minutos (ou menos), estou à beira da água e tenho de dizer isto: muitas vezes, a cor é escura, o cheiro nauseabundo e a água está coberta de um brilho feito de sujidade e gordura. Dou por mim a ter saudades do confinamento. Bastaram duas semanas para o rio ficar límpido e cristalino. Conseguíamos ver os peixes, o que, agora, é impensável. Imagino os bichos a esfregarem os olhos com as barbatanas e a chocarem uns contra os outros, desorientados, sem verem um palmo à frente de nariz (os peixes não têm nariz; terão focinho? Adiante!) e a julgarem-se cegos. Isto não impede que alguns homens com paciência de Jó arrisquem a sua saúde a pescar naquela zona. Eu não comeria daqueles peixes nem que me pagassem, mas isso é lá com eles.


Perto da ponte romana, o primeiro sinal de esperança: uma tabuleta com a frase “Prado por cortar, abelhas a trabalhar”. Finalmente, um exemplo positivo de respeito pela Natureza e pelos seus animais. Pelo menos, as abelhas estão com mais sorte do que os peixes e há quem se preocupe com elas. Acho um ato tão gentil que me arranca o primeiro sorriso.


Mais à frente, chego ao coração do Parque de Lazer das Taipas, onde gente de todas as idades descansa à sombra das árvores enquanto observa o rio, faz exercício físico ou brinca no parque infantil. Nesta altura, há um indivíduo que passa por mim pela terceira vez e invejo-lhe a determinação. Continuo a minha caminhada e observo as crianças a darem pão aos patos. Estes estão com sorte: ainda ninguém fez um arroz com eles. Conhecendo os cidadãos deste país como conheço, provavelmente têm o destino traçado, como aconteceu com muitas dessas aves noutros locais e que foram desaparecendo aos poucos, talvez levadas por extraterrestres.


Entre esta zona e a Praia Seca faço umas centenas de metros entre o rio e campos de milho que, daqui a uns meses, vão ser desfalcados de algumas espigas. O desrespeito pela propriedade e pelo trabalho alheios é algo que me choca. Recordo a história da galinha e do pão e concluo: há muito comedores e poucos trabalhadores.


Quando, finalmente, chego à Praia Seca, consigo, finalmente, ver peixes, alguns enormes, num afluente do Ave. Ali, parece-me que a pesca é proibida. Caso contrário, os descendentes de Jó infestariam as suas margens. Paro sempre um bocadinho para espreitar o meio metro de água que fervilha de movimento ininterrupto e de vida. Sorrio pela segunda vez.


Deixo o rio para trás e passo por um bairro de vivendas dos dois lados da estrada. Faço este percurso há 4 anos, desde que me mudei para as Taipas, e é curioso ver como há cães que me ladram sempre com a energia de quem pretende estraçalhar-me. É o caso dos cães de pequeno e de médio porte. Outros, enormes, treinam um breve rosnar, mas reconhecem-me e retomam o lugar confortável de onde saíram para fazerem alarde do seu domínio. Não consigo impedir-me de comparar os cães às pessoas: há-os mais estúpidos que outros e os mais medrosos são, também, os que fazem mais barulho, protegidos atrás do gradeamento.


Mais uns minutos e chego à estrada que liga Caldas das Taipas à Póvoa de Lanhoso. Passo junto a um souto cujos cheiros me fazem viajar até à minha infância, ao tempo em que ia aos cogumelos (míscaros, sanchas e frades- consultem a Infopédia, estão lá os três) e o solo húmido sob os carvalhos me invadia as narinas. É o mesmo cheiro que sinto quando passo por ali e agradeço o reavivar-me a memória. É também nesta zona que abundam lagartixas. Dispostas pela berma da estrada, a aproveitar os raios de sol, fogem diante dos meus pés quando me aproximo. Algumas não têm rabo, o que é a prova inequívoca de que a luta pela sobrevivência, por vezes, sai cara, mas é necessária. O rabo volta a crescer, portanto poderíamos dizer que não é assim um sacrifício tão grande, mas foi a maneira que uma espécie pequena e frágil descobriu para não desaparecer de um planeta com milhões de anos.


Há muitos anos, quando surgiram os primeiros ecopontos na minha terra, colocaram três contentores à entrada do meu bairro: um verde, um azul e um amarelo. Alguém teve a paciência (lá vem o Jó de novo) de encher o contentor verde, que tem a abertura mais pequena de todos, com batatas! Imaginem o tempo que demorou o idiota que teve essa ideia estapafúrdia a encher o contentor! A estupidez de certas pessoas não deixa de me surpreender. Mais tarde, algum iluminado teve a brilhante ideia de deitar fogo ao ecoponto e os três contentores ficaram reduzidos a restos retorcidos de plástico negro. Será escusado dizer que nunca mais ali colocaram um novo ecoponto e lembrei-me deste episódio porquê? Porque há energúmenos em todo o lado e as Taipas não fogem à regra. Certa vez, alguém se deu ao trabalho de arrancar os contentores do lixo que estavam colocados nos postes de eletricidade, a caminho do Parque Industrial, e os largou ali mesmo, no passeio, não sem antes despejarem o lixo para o chão. Um deles foi parar no meio de um campo de erva, a cinquenta metros do poste onde estava a incomodar o(s) vândalo(s) que decidiu(iram) praticar o lançamento do peso com o caixote do lixo. Aconteceu uma vez, mas nada impede que, mais cedo ou mais tarde, se repita.


A dada altura, surge um edifício, um bloco retangular branco com três filas de janelas viradas para a estrada. Trata-se de um lar de idosos onde estão aqueles que física ou psicologicamente perderam a autonomia. Muitos deles sobreviveram aos cônjuges durante décadas. Muitos deles têm vários filhos. Muitos deles nunca pensaram que o seu fim surgiria naquele lugar. Muitos deles são esquecidos.

Eu tenho dois filhos e pergunto-me qual será o meu destino. É inevitável não pensar nisso. A velhice e a morte fazem parte da vida e nem todos têm a sorte de chegar a uma idade em que brincam com os netos. Logo, temos de viver um dia de cada vez. Devemos fazer planos, claro que sim, mas não a longo prazo: é um desperdídio de energia.


A vida é uma roleta russa e nunca sabemos quando a bala vai sair disparada e atravessar o nosso crânio. Até lá, resta viver. Viver é diferente de sobreviver e eu sobrevivi até 2018. Costumo dizer que foi nesse ano que (re)nasci. Deixei de me lamentar pelo que não tinha e passei a valorizar o que tinha. Podia ser pouco, mas era valiosíssimo!

Agora, quase a atingir o meio século de vida, estou numa nova fase. Sou a prova de que nunca é tarde para começar a viver. É errada a ideia de que se nasce quando saímos do útero da nossa mãe. Eu nasci em 2018 e ainda sou uma criança. Cheia de cabelos brancos, é verdade, mas do mesmo modo como me indigno com tanta falta de civismo, também sou de sorriso fácil: tanto sorrio quando observo as nuvens, como quando ouço os melros a cantar ao desafio. São as pequenas coisas que me fazem feliz: como caminhar enquanto ouço música pelos auriculares e faço algumas reflexões dispersas.


Não sei muito bem como este texto veio dar aqui, mas acho que acaba muito bem assim.



Lucinda Cunha

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