No meu bairro já não há crianças

No meu bairro já não há crianças. Ou melhor, contam-se pelos dedos de uma mão e aquelas que ainda por lá se veem vão, na maioria, visitar os avós.


Na minha altura, quando eu era uma criança, éramos mais de 20 e brincávamos livres pelo bairro. Só tínhamos a preocupação esporádica de nos desviarmos dos carros e das motas que passavam de longe a longe. Saltávamos à corda, aos elásticos , à mosca, jogávamos às escondidas - claro! - e futebol. Como eu era a mais velha, ia sempre para a baliza. Por um lado, não me cansava tanto (ainda hoje dispenso correr e prefiro caminhar em passo apressado) ; por outro, como era a mais alta, a minha equipa considerava-me sempre um elemento importante e era a primeira a ser escolhida. A minha mãe chamava-me e dizia que aquelas não eram brincadeiras para uma menina da minha idade. Devia ter uns 13 ou 14 anos e tinha a altura que tenho hoje em dia, mas a mesma vontade de brincar dos meus vizinhos e do meu irmão, que tem menos 3 anos que eu.


Como disse, éramos mais de 20 e hoje apenas 4 se mantêm no bairro. Curiosamente, todos estão solteiros e sem filhos. Os que se casaram, mudaram de bairro, de localidade - que é o meu caso - ou até de país. De muitos deles, nunca mais tive notícias, mas continuo a recordar com nostalgia as noites de verão nas quais não existia televisão nem nada que nos prendesse em casa depois de jantar. Durante o dia, o sol era abrasador e ninguém se atrevia a sair de casa. Sem haver necessidade de combinar a hora do reencontro, à noite juntávamo-nos todos para brincar e conversar. Às vezes, apareciam os adultos, alguns com instrumentos musicais - cavaquinho, viola, concertina e ferrinhos. Criava-se uma pequena orquestra e, então, nascia um festival popular improvisado em que todos cantávamos e dançávamos até o sono, ou a necessidade de ir dormir, falarem mais alto.


Aguardávamos o resto do ano com ansiedade pelo verão e pelas noites longas e musicais; pelos jogos e brincadeiras; pelas conversas despreocupadas; pelas anedotas em catadupa que se transformavam num concurso para ver quem arrancava mais gargalhadas.


Uma vez, pegámos em mantas e cobertores para nos deitarmos à espera de uma chuva de estrelas anunciada na televisão. Mais do que a visão-relâmpago dos meteoritos que riscavam o céu, o importante era estarmos todos juntos, de barriga para o ar, a conversar. Depois dessa noite, eu e o irmão ainda chegámos a deitar-nos na varanda, muitas vezes, a olhar para o céu noturno numa altura em que a luz elétrica ainda não nos impedia de apreciar a abóbada celeste como hoje em dia. É uma linda lembrança que guardo - e acredito que ele também - da nossa infância.


Hoje quase todos temos filhos e levamo-los até ao bairro para visitarem os avós, mas eles nunca conhecerão a sensação de pertencer um grupo com mais de 20 crianças que se divertiam sem necessidade de jogar no tablet, no telemóvel ou no computador. Era assim que éramos felizes.

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Lucinda Cunha

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