A leitura é uma atividade essencial para o desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças e deve ser uma prática estimulada desde a primeira infância. Mesmo quando os livros contêm apenas imagens, são um forte estimulador intelectual para as crianças que ainda estão a formar a sua linguagem, além de estimularem a criatividade e a imaginação.
"Eu queria uma escola que cultivasse a curiosidade de aprender que é em vocês natural."
(Carlos Drummond de Andrade)
Tal como refere Drummond de Andrade, as crianças são curiosas por natureza e ler poesia é uma prática que deve ser promovida pelos pais desde o nascimento. Verão como as crianças ficam deslumbradas quando viram as páginas de um livro e vão descobrindo cores, imagens e letras diferentes, todo um mundo que os fascina.
Assim, tendo em conta as várias vantagens da leitura de poesia, aqui vos deixo oito motivos pelos quais as crianças deverão ler poemas.
1. Ler poesia é divertido
Para estimular os hábitos de leitura de poesia, nada melhor do que selecionar poemas infantis divertidos porque ler poesia pode ser uma brincadeira. Quando estamos tristes ou desanimados, nada melhor do que ler um poema divertido para nos sentirmos imediatamente melhor. Há poemas que nos fazem rir porque são disparatados ou porque o poeta brinca com os significados das palavras, como se pode ver neste poema de Fernando Pessoa.
Poema Pial
Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias.
Pia número UM
Para quem mexe as orelhas em jejum.
Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.
Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.
Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.
Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.
Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.
Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.
Pia número OITO,
Para quem parte nozes quando é afoito.
Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.
Pia número DEZ,
Para quem cola selos nas unhas dos pés.
E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias!
(Fernando Pessoa, Quadras ao gosto popular)
2. A Poesia é uma arte
A poesia é uma forma de arte e, como tal, desenvolve nas crianças o sentido estético através da tomada de consciência das sonoridades, das rimas, das aliterações e onomatopeias, do ritmo e da musicalidade que está por trás de certos versos, mas também pela linguagem simbólica e metafórica inerentes ao texto poético.
Outro e outro e outro
não se cansam os relâmpagos
de beijar a montanha
(João Manuel Ribeiro)
3. A poesia combate a solidão e o silêncio
Numa época dominada pelo audiovisual e pela internet, é cada vez mais raro ver crianças embrenhadas na leitura de livros, sejam ou não de poesia. É vulgar ver, em locais públicos, famílias inteiras distraídas, a mexerem nos seus telemóveis, a jogar ou a consultar as redes sociais, ignorando-se mutuamente. Um livro é a melhor companhia para aqueles que se sentem sós no meio de uma multidão.
O limpa-palavras
Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras, não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes um braço para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
(Álvaro Magalhães, O limpa-palavras e outros poemas)
4. Ler incentiva à escrita
Os grandes escritores são, antes de mais, grandes leitores, ávidos e devoradores de livros de todos os géneros e tipologias. Portanto, ler incentiva a prática da escrita e a criatividade literária.
Quem não se sentirá tentado a reescrever o poema, de Maria Alberta Menéres, “A dança do b”, alterando a letra “b” por qualquer outra do alfabeto, num divertido exercício de escrita?
A dança do b
Um dia, o boi, o burro, o besouro,
O borrego, o búfalo e a borboleta
Repararam que os seus nomes
Começavam todos por b.
Disseram ao mesmo tempo:
Que bonito!
O bacalhau, o berbigão, o besugo
E o búzio, lá no mar,
Repararam que os seus nomes
Também começavam por b.
Disseram todos assim:
Que bonito!
Veio logo uma baleia de longe,
A gritar. Esperem,
Esperem aí por mim!
(Maria Alberta Menéres, Um peixe no mar)
5. Ler poesia estimula a imaginação
As crianças possuem uma imaginação fértil. Onde nós vemos uma caixa de papelão, elas veem um castelo. Onde nós vemos um tapete, elas veem um avião. Onde nós vemos flores, elas veem fadas. Onde nós vemos um charco, elas veem um lago. Ler poesia é ótimo para estimular a imaginação infantil, porque o mundo da poesia e da imaginação não possui limites.
6. Ler poesia permite a autorreflexão
As crianças são capazes de fazer inferências e deduções, mas, para isso, precisam de ser orientadas e encaminhadas para as leituras certas. Assim, as crianças deverão ler poesia que atenda à sua idade e maturidade, sobre temas que os desafiem e impulsionem a reflexão e o autoconhecimento.
Se eu fosse um padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado-
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma…
e um belo poema – ainda que de Deus se aparte –
um belo poema sempre leva a Deus!
(Mário Quintana, Nova antologia poética)
7. Ler poesia estimula a memorização
Há poemas que são facilmente memorizáveis e é comum ver adultos que ainda são capazes de declamar poemas aprendidos no primeiro ciclo e fazem-no com tanto orgulho e emoção que funciona quase como uma viagem nostálgica no tempo que permite que se mantenha a ligação aos longínquos tempos da infância. É o caso do poema “Nau Catrineta”, recolhido por Almeida Garret no seu Romanceiro.
8. Ler poesia desenvolve a expressão oral
A memorização dos poemas permite que a expressão oral saia beneficiada. É importante que as crianças se habituem, desde cedo, a falar perante uma plateia de modo a ganharem autoestima e confiança para, um dia, enfrentarem o mundo do trabalho, que cada vez mais valoriza funcionários capazes de manterem um discurso corretamente elaborado e coerente. Aspetos como a entoação, o ritmo, a postura, a gesticulação adequada, e muitos outros, são trabalhados quando se declama poesia.
Mãe
A mãe
é uma árvore
e eu sou uma flor.
A mãe
tem olhos altos como estrelas.
Os seus cabelos brilham
como o sol.
A mãe
faz coisas mágicas:
transforma farinha e ovos
em bolos,
linhas em camisolas,
trabalho em dinheiro.
A mãe
tem mais força do que o vento:
carrega sacos e sacos do supermercado
e ainda me carrega a mim.
A mãe
quando canta
tem um pássaro na garganta.
A mãe
conhece o bem e o mal.
Diz que é bem partir pinhões
e partir copos é mal.
Eu acho tudo igual.
A mãe
sabe para onde vão
todos os autocarros,
descobre as histórias que contam
as letras dos livros.
A mãe
tem na barriga um ninho.
É lá que guarda
o meu irmãozinho.
A mãe
podia ser só minha.
Mas tenho de a emprestar
a tanta gente…
A mãe
à noite descasca batatas.
Eu desenho caras nelas
e a cara mais linda
é da minha mãe.
(Luísa Ducla Soares, Poemas da mentira e da verdade)
SOBRE
Sou escritora e também professora. Amo escrever e ensinar!