Reza a História que Ulisses foi o único sobrevivente da sua viagem de regresso a casa, vinte anos depois de ter deflagrado a Guerra de Troia. Cabe-me a mim esclarecer essa fabulação. Eu, Oblívio de Ítaca, companheiro de Ulisses na interminável Guerra entre gregos e troianos, vou aqui contar a minha história, desconhecida por quase todos.
Quando eu e os meus companheiros fomos convocados pelo nosso amado rei, eu tinha dezoito anos. Não passava de um mancebo habituado a jogos de guerra, a lutar na areia da praia com os meus irmãos, meras brincadeiras inofensivas que pouco acrescentavam ao meu conhecimento de técnicas de combate.
Ulisses, consternado por deixar a sua mulher, Penélope, e o pequeno Telémaco, praticamente acabado de nascer, ordenou que partíssemos à primeira luz do dia. Apolo ainda se espreguiçava num leito de pétalas de rosa, mas a Aurora já descia à Terra com os seus cabelos dourados a esvoaçar ao sabor da brisa.
Com a aprovação de Zeus e de Atena, partimos bem cedo. O mar estava calmo e plano e os nossos familiares acompanharam-nos até à praia, chorosos, mas cheios de ímpeto patriótico, certos de que obteríamos uma gloriosa vitória sobre os indignos troianos, que tinham roubado um dos nossos maiores tesouros: Helena, esposa de Menelau.
Meu irmão, Eurípedes, era um dos companheiros de Ulisses desde os tempos da juventude. Conheciam-se desde crianças e mantinham uma amizade que se fortalecia a cada batalha. Foi através dele que ingressei no navio comandado pelo ardiloso Ulisses, famoso em todo o Mediterrâneo e norte de África pela sua astúcia, que espantava homens e deuses.
A viagem até Troia decorreu sem sobressaltos, auxiliados que fomos por Éolo e pelas ninfas, as filhas de Nereu, divindades tão bonitas que eram capazes de enlouquecer de amor qualquer homem.
A guerra durou dez anos e foi graças ao nosso amado rei, que inventou um estratagema para penetrarmos as muralhas de Troia, que conseguimos vencer o conflito, após milhares de mortos que hoje têm a sua morada no reino de Hades. Com a orientação de Ulisses, construímos um enorme cavalo de madeira, oco no seu interior, que albergou dezenas de gregos. Entre eles estava eu, Oblívio, filho de Eunápio, e foi assim que, para sempre, entrei nos anais da História da Grécia e do Mundo.
De regresso a casa, com o navio cheio de despojos da guerra, ao terceiro dia fomos envolvidos por um espesso nevoeiro, tão espesso que mal conseguíamos ver o companheiro que remava ao nosso lado. Três semanas depois, conseguimos avistar terra, uma ilha árida e seca como um deserto onde não conseguíamos vislumbrar nenhum verde. Felizes por podermos pisar terra novamente, aportámos numa pequena baía. As nossas bocas ansiavam por água doce e fresca e conseguimos encher os odres de estômago de carneiro e de boi ali mesmo, na praia, onde o líquido cristalino era abundante. Morta a sede, havia que matar a fome. Há semanas que só comíamos biscoitos endurecidos e bolorentos e os nossos estômagos protestavam há dias contra aquela dieta forçada. Ulisses reuniu um grupo de cerca de quinze homens e eu ofereci-me para também o acompanhar, ansioso por explorar a ilha, esperançoso que ela oferecesse mais do que poeira e rochas. Na verdade, contornada a encosta da montanha, logo surgiram alguns arbustos rasteiros onde camaleões, bichos abençoados pelos deuses que os tinham ensinado a esconderem-se do perigo ao primeiro sinal, se banqueteavam placidamente.
Subimos a encosta a custo e a meio da subida começámos a escutar o balir de cabras ou ovelhas.
“Deve haver pessoas nesta ilha!”
exclamou Ulisses. Reanimado com a nova descoberta, o nosso rei recuperou a destreza da juventude, num ímpeto desgovernado que fez alguns de nós tropeçar, na ansiedade de o igualarmos em agilidade.
No cimo do outeiro era mais claro o som dos animais e, por trás de um arvoredo surgiu a entrada de uma enorme gruta. Entrámos, vigilantes, e verificámos que a gruta estava vazia, mas havia queijo fartamente disposto a um canto. Cegos pela fome de dias de jejum, cometemos a imprudência, quase juvenil, de comer o que se nos apresentava diante dos olhos. Ulisses pediu a um companheiro que fosse ao barco buscar uns odres de vinho para pagar aos habitantes tão generosa oferta.
Não tinha passado meia hora quando sentimos que alguém se aproximava. O bater pesado de passos tornava-se cada vez mais ensurdecedor e o som enchia a caverna. Eis quando, horrorizados, vimos entrar um terrível monstro, da altura de cinco homens e com um único olho! Sim… já adivinharam. Era a caverna do temível Polifemo, um dos ciclopes, filho de Poseidon, deus dos mares. Já todos sabem como o meu rei tão sabiamente o venceu, espetando-lhe um pau afiado no único olho, o que permitiu a muitos de nós conseguir fugir quando ele retirou a pedra que servia de porta da sua gruta, nossa prisão, para pedir ajuda aos irmãos que moravam do outro lado da ilha.
Consegui rastejar entre duas ovelhas sem que o monstro me encontrasse. Corri desesperado pela encosta abaixo, mas as minhas sandálias, tão gastas de tantas milhas percorridas, escorregavam na areia pedregosa e seca e dificultavam a minha fuga. Dos meus companheiros, mais ágeis e seguros que eu, já só via breves aparições das túnicas que os cobriam, algumas esfarrapadas pelos arbustos espinhosos que ladeavam o caminho.
Subitamente, uma pedra rolou sob a minha sandália e eu caí sobre umas giestas ressequidas pelo sol que camuflavam um rochedo afiado pelo vento e pela chuva. Bati violentamente com a cabeça e perdi os sentidos. Entre a vegetação, permaneci camuflado e, quando acordei, já as estrelas povoavam o céu! Percebi, de imediato, a minha perdição... Oh, deuses! Oh, destino cruel! Disto não me alertara o oráculo! Meus companheiros, por certo, acreditaram que jazia no estômago de Polifemo, como acontecera a outros homens e, consternados pela perda de mais um amigo, partiram velozmente em busca do caminho para casa. Como chorei! Maldisse os deuses que me tinham abandonado à morte certa numa ilha cheia de monstros comedores de homens. Não tinha eu feito o sacrifício que exigia a nobreza da nossa missão e oferecido um bode a Zeus para que me protegesse e permitisse o regresso aos braços de minha adorada mãe? Porque me esqueciam naquele lugar horrendo e cemitério de gregos? Por longas horas julguei a minha vida perdida, mas um relâmpago de esperança iluminou o céu sobre a minha cabeça, ainda que a noite sem lua estivesse envolta em trevas.
“Tenho de encontrar uma maneira de sair desta ilha!” - pensei.
Tentei convencer-me dos meus próprios pensamentos, tão enfraquecidos como o fogo mortiço.
Aproximei-me devagar da caverna de Polifemo e ouvi-o a conversar com dois dos seus irmãos, maiores e mais terríveis do que o algoz dos meus companheiros. Um deles mudava os panos que envolviam a cabeça e o olho, agora cego.
“Não receies, irmão! Falei com nosso pai, que me garantiu que Ulisses nunca encontrará Ítaca e irá arrepender-se da indignidade que cometeu contra ti! Enganou-te e, por isso, andará perdido para sempre.”
O meu coração ficou receoso pelos meus amigos! Como iriam eles enfrentar a fúria do mar, se dele dependiam para alcançarem a nossa adorada pátria? Dificilmente voltariam a pisar o solo sagrado de Ítaca, berço de heróis e do mítico Ulisses, tendo por inimigo o vingativo deus dos mares!
Longas horas permaneci na penumbra, entre a vegetação, atento a qualquer movimento, com a respiração suspensa para não correr o risco de ser detetado. Quando o horrífico Polifemo saiu com o rebanho, ainda que as minhas pernas tremessem como a erva fresca ao vento, corri a buscar o queijo que consegui carregar para esconder no tronco oco de uma árvore. Não podia comprometer a minha estadia secreta na ilha, por isso procurei envolvê-lo em folhas de um carvalho apodrecido que entristecia a trezentos passos da caverna do monstro. Tinha de camuflar o meu cheiro, caso contrário os terríveis gigantes encontrar-me-iam e fariam de mim refeição! Aterrorizado, deixei cair a noite e quando estavam todos nas suas cavernas e não se ouvia nem o som das ovelhas, juntei excrementos dos animais, que coloquei em frente a um buraco numa rocha que decidi transformar no meu abrigo. Foi nesse local imundo que permaneci escondido, não sei durante quanto tempo…
Foram tempos dolorosos, de solidão e terror, sempre atento ao menor ruído. A ilha estava cheia de aves, algumas com cores exuberantes de arco-íris, outras barulhentas, que batiam ferozmente nos troncos das árvores à procura de alimento. Em permanente sobressalto, e assustado com o som do meu coração, saía de noite à procura de frutos silvestres e água. A gruta era fresca e protegia-me do sol abrasivo que cobria a ilha durante todo o ano. Às vezes, o cansaço vencia-me e via-me incapaz de impedir que as pálpebras se cerrassem, pesadas como rochedos. Acordava a abafar um grito de desespero. Na minha cabeça repetia-se, vezes sem conta, a imagem do horrível Polifemo a comer os meus companheiros como se de uma iguaria se tratassem. Via-lhe o sangue a escorrer pelos cantos asquerosos da boca e, nesse momento, queria gritar de dor, mas Ulisses surgia, dava-me a mão e eu acordava nesse momento, sufocado.
Onde andariam os meus companheiros? Já estariam na nossa bela pátria, nos seus leitos reconfortantes e junto das suas famílias? Como desejava ardentemente que sim! Por vezes imaginava os seus olhares surpresos por me verem desembarcar, vivo e saudável! Que alegria! Que ilusão… Nunca mais os veria, sei-o agora, exceto ao magnífico Ulisses…
Um certo dia, mais confiante pelos anos em que tinha permanecido indetetado, a viver do que a natureza me oferecia, magro como um cão vadio, ciente de que nada tinha a perder, pois a minha vida já se fora há muito, avistei um navio ancorado na mesma baía onde eu e os meus amigos desembarcáramos muito tempo antes. Escondi-me nuns arbustos à espreita. De quem seria aquele navio? Seriam mais gregos desafortunados? Não podia ficar quieto e ainda que estivesse tão magro que não tinha a certeza de ter forças para o alcançar a nado, lancei-me ao mar com a preocupação de não bater demasiado os pés para não alertar os tripulantes. Nada me garantia que não fossem inimigos troianos! Subi, a custo, pela amarra que segurava o navio. Escalei a corda, com todo o cuidado, e espreitei pelo escovém da âncora.
Como não vi ninguém, e seguro de que seria melhor a morte do que permanecer naquela ilha mais tempo, corri a procurar proteção sob o convés. Num canto, estavam acomodados galinhas e porcos. Fiquei escondido na penumbra durante horas a orar a Atena e a Zeus para que o cheiro fétido dos animais disfarçasse a minha presença.
Passou a noite e, na manhã seguinte, senti passos no convés. Em alerta, o meu sangue fervia nas minhas veias de tal maneira que pensei que ia explodir. Que horror! As vozes eram familiares! Percebi que aquele navio onde me refugiara com a esperança de encontrar a salvação era agora uma prisão de onde não poderia escapar. Estava irremediavelmente perdido!
Navegámos durante cinco dias, em que permaneci deitado nos meus excrementos e nos dos animais, escondido atrás de umas caixas de madeira. As horas passaram tão lentas que pensei que seria incapaz de me mover ou de fugir se fosse encontrado no meu esconderijo de sujidade. Bichos rastejantes e comedores de porcaria começaram a comer-me a carne e a abrir chagas na minha pele que queimavam como brasas. O desespero apoderou-se de mim, mais forte do que nunca, e acreditei que não ia sobreviver àquela desventura.
Os três monstros, tão fortes como dez touros juntos, ainda que parcos em astúcia, tinham os sentidos suficientemente apurados para se aperceberem da minha presença na sua ilha. Só percebi que Zeus lhes tinha toldado o olfato e a visão quando vi que estávamos na Sicília, ilha da Itália onde o deus Hefesto fabrica os relâmpagos que Zeus, nos momentos de ira, lança sobre a Terra. Era um trabalho tão pesado que só os ciclopes o podiam realizar. O pai dos deuses não me abandonara. Graças aos Céus! Minhas preces tinham sido atendidas!
Ouvi-os conversar durante a noite: tinham sido chamados de urgência por Hefesto para cumprirem a missão de armarem o pai dos deuses. Protegido pela penumbra e pelo feitiço que Zeus lançara sobre os ciclopes, acreditava eu, permaneci escondido com a respiração suspensa até ter a certeza de que o barco estava vazio. Depois de recolherem os animais e demais pertences, os gigantes saíram do navio e dirigiram-se para terra, mas não me movi até chegar a noite, ainda atemorizado por anos de fuga e solidão como animal vadio que tem medo de gente.
Já tinha ouvido contar histórias sobre heróis e soldados, provenientes daquela ilha, que se tinham transformado em estrelas após feitos heroicos. Banhei-me nas águas quentes do Mediterrâneo e senti-me abençoado e grato pela minha vida. Nunca antes me tinha apercebido de como o mar era belo, de como a brisa suave é regeneradora e a natureza apaixonante. Os meus olhos tinham estado fechados para a beleza do mundo durante tanto tempo que quase se tinham petrificado. Os meus ouvidos há muito se tinham cerrado para o canto dos pássaros, para o murmurar das ondas a contar segredos do outro lado do mundo e para o canto das árvores a bailar com a melodia do vento. Deitei-me na areia da praia, ainda quente apesar de já ter caído a noite, e observei, pela primeira vez em muitos anos, a beleza das estrelas. Pude ver sobre mim a constelação de Argos, assim chamada quando Jasão e os seus argonautas foram transformados em estrelas, eternizando os feitos gloriosos por eles praticados. Como é belo o firmamento! Como é bela a noite, minha amiga e protetora! Finalmente livre do perigo, pude contemplá-la como merecia. Nix, deusa da noite, domadora de deuses e homens, estivera sempre comigo. Quão ingrato me senti!
Aos primeiros raios de Apolo, empreendi a minha jornada a pé. Naquela parte da ilha não existiam humanos. Todos sabiam da forja de Hefesto no interior do Etna e não se arriscavam a servir de petisco aos seus gigantescos ajudantes. O sol desapareceu por três vezes no horizonte até ver o primeiro sinal de gente: uma cerca que rodeava um campo onde pastavam, mansos e fartos, vacas e bois. A visão desses animais foi de uma emoção de tal modo inigualável que os meus olhos se povoaram de água, salgada e límpida como o mar que atravessara. Rodeei a cerca à procura de uma entrada, mas, quando me preparava para a transpor, senti uma forte pancada na cabeça e fiquei desacordado.
Acordei com uma forte dor na nuca e com olhares de indagação à minha volta.
“Aqui os ladrões de gado são duramente castigados!”
Tentei explicar quem era e como tinha chegado ali, mas o meu aspeto de velho mendigo toldou a confiança daquelas pessoas. Os homens só acreditam no que é fácil acreditar com os olhos. Julgaram-me louco e de nada valeu dizer que era um dos companheiros de Ulisses, herói grego, rei de Ítaca. Contei como ficara esquecido na ilha dos Ciclopes onde, durante anos, vivi como rato faminto escondido do majestoso falcão. Contei como saía apenas durante a noite para não ser detetado. Contei como tinha conseguido fugir a bordo do barco que Zeus enviara para transportar os monstruosos ferreiros de Hefesto e como, desse modo, tinha alcançado as costas da bela e fértil ilha da Sicília, famosa pelas suas pastagens verdejantes e pelos campos a perder de vista pejados de vinhedos e olivais. Orgulhoso, pensei que seriam contadas estórias sobre as minhas aventuras, que seriam cantados hinos de louvor e que o meu nome ficaria eternamente registado nos livros de História, mas foi tudo uma ilusão!
Eu, que consegui sobreviver aos ciclopes com a ajuda dos deuses, não consegui escapar ao julgamento deturpado dos Homens. Com o esqueleto desprovido de carne, tão fraco que o meu andar vacilante denunciava os anos de fome que dolorosamente suportara, tornei-me vagabundo dos caminhos, mendigando um copo de vinho e um pedaço de pão pelas portas de famílias abastadas que me escorraçavam aos pontapés como cão sarnento.
Os deuses dão com uma mão e tiram com a outra. Só assim o mundo continua em equilíbrio e evita que os Homens caiam no permanente Caos. Só assim se explica que a minha história tenha chegado a Ítaca, aos ouvidos do meu amado rei, levada por um comerciante de tecidos, que não quis deixar de ver com os próprios olhos o velho louco que se dizia companheiro do grande Ulisses.
O meu rei viajou ao meu encontro e reconheceu-me pela minha estatura de pinheiro seco e pelas minhas sobrancelhas de arbusto, ainda que brancas e mais fartas do que antes. Chorámos nos braços um do outro durante muito tempo, tanto que os anos pareceram voltar para trás. Contou-me como tinha visto no reino de Hades os companheiros mortos em Troia e aqueles que tinham sido devorados pelo horrífico Polifemo naquele dia em que, sei-o hoje, os deuses me salvaram da morte certa. Porquê? Nunca o poderei saber. Talvez quisessem mostrar que sem eles os Homens não valem nada. Talvez se divertissem a observar-me, lá do Olimpo, a esgueirar-me por entre os arbustos como um animal roedor…
Voltei com Ulisses para a nossa amada pátria, sobre um mar sem ondas, e com ele vivi, até à sua morte. Faleceu nos braços da sua Penélope, tão bela aos setenta como aos vinte anos, e com Atena, sua protetora, aos pés da cama. Ainda que quase todos me julguem um velho louco e delirante, que Ulisses acolheu, por piedade, no seu palácio, resta-me aguardar, com serenidade, o reencontro no reino de Hades.
SOBRE
Sou escritora e também professora. Amo escrever e ensinar!