Conto de Halloween (Dia das Bruxas)
Quando o telefone tocou de madrugada, por volta das três horas, Sara soube que algo de errado se passara. Às apalpadelas, com os olhos fechados e morta de sono e de cansaço, conseguiu encontrar o telemóvel, que entretanto caíra ao chão. Ao ver o nome do tio Henrique no visor, teve a certeza de que algo de muito errado tinha acontecido porque aquele tio, irmão mais velho da sua mãe e já viúvo, nunca lhe telefonava.
Ainda o sol não tinha nascido, já Sara se encontrava no aeroporto pronta a embarcar para a sua terra natal após três anos de ausência. Desta vez, não poderia inventar uma qualquer desculpa, como fazia sempre que era convidada para as festas da família: os pais tinham sofrido um acidente de viação quando, após uma curva, um condutor embriagado em contramão projetou o velho Renault dos seus pais a vários dezenas de metros de distância. O pai tivera morte imediata, mas a mãe sobrevivera e estava ligada às máquinas que monitorizavam os seus sinais vitais.
O tio Henrique não quisera entrar em grandes pormenores. Era um homenzinho pequenino e frágil que parecia pedir licença sempre que pretendia tomar a palavra e Sara conseguira perceber pelo tom de voz hesitante que a mãe estava em estado muito grave. Talvez estivesse já morta e o tio não tivera a coragem necessária para ser completamente sincero com ela.
Regressar a casa causava-lhe arrepios e trazia de volta pensamentos que a haviam atormentado durante anos. Porém, desta vez não podia esquivar-se nem fugir ao medo que a invadia.
Enquanto observava lá em baixo as casas pequeninas como formigas, pensava que a mãe poderia já não pertencer ao mundo dos vivos. Se assim fosse, estaria órfã. Ainda por cima, sem irmãos. Sentia-se mais só do que nunca...
Mal aterrou, dirigiu-se para a saída do aeroporto. Não trazia nada com ela, a não ser uma mochila onde guardava a carteira e os bens pessoais. Sabia que tinha deixado roupa e calçado para trás quando tinha decidido aceitar um emprego como contabilista numa cidade do outro lado do país, bem longe, onde os fantasmas do passado não a perseguissem. Mas agora tinha-se visto obrigada a regressar, e logo na pior altura possível, como se o Destino a quisesse castigar por tentar fugir ao inevitável. Era véspera de Halloween, o que aumentava ainda mais o terror que sentia naquele momento. Coisas muito estranhas aconteciam naquela casa na noite de Halloween...
No hospital, a confusão era enorme: ambulâncias chegavam e partiam; pessoal médico corria desenfreado; sirenes apitavam em desespero e havia macas espalhadas pelo corredor, muitas com doentes e feridos que gemiam sem parar. Sara aproximou-se do balcão de atendimento e perguntou pela mãe. Atrás de si, sentado numa cadeira baixa, o tio Henrique, ao ouvir o nome da irmã, saiu do transe no qual se encontrava e chamou pela sobrinha.
̶ Como está a minha mãe? Está morta, não está? O tio não me quis dizer a verdade, pois não?
̶ Calma, filha, a tua mãe está viva. Os médicos tiveram de a pôr em coma porque ela estava com muitas dores - partiu a anca e um braço e tem um traumatismo craniano- e quando soube da morte do teu pai entrou em choque. Como a tensão dela estava a subir e estavam com medo que tivesse um AVC, decidiram induzir o coma, durante uns dias, até os medicamentos fazerem mais efeito e lhe aliviarem as dores.
Sara sentou-se com a cabeça entre as mãos e, pela primeira vez desde que recebera a trágica notícia, chorou.
̶ Deves estar cansada, minha filha. A tua mãe não pode receber visitas. Eu estava à tua espera para te explicar melhor as coisas e agora vou também para casa. Não durmo há mais de 24 h e também preciso descansar. A idade já pesa, sabes como é...
Sara sentiu que o mundo se abria sob os pés e a engolia, tal como naquele sonho... Acordava muitas vezes em sobressalto com esse sonho, que era sempre o mesmo.
A chave suplente da casa estava debaixo do vaso de barro pintado de azul, como sempre, desde que se tinham mudado para aquele lugar. Num ápice, regressou ao dia da mudança: tinha dez anos quando a família se mudou para ali, na véspera do Halloween. Ainda se lembrava de como o bairro estava decorado com abóboras transformadas em lanternas, lençóis que representavam fantasmas esvoaçantes e cartolinas pretas nas árvores a imitarem morcegos. Sara sempre tivera medo do Halloween, das máscaras assustadoras e dos sons sinistros que os fanáticos faziam durante toda a noite e o facto de a mudança se fazer precisamente naquele dia não podia augurar nada de bom.
A princípio, tudo parecia normal. Era uma casa branca, com sebes brancas e janelas brancas. Tanta brancura parecia transparecer uma pureza que não existia dentro das quatro paredes. Sara era apenas uma criança, mas conseguia sentir uma energia negativa e carregada a percorrer todas as divisões, como uma bruma invisível aos olhos, mas percetível pelo olfato. Conseguia cheirar algo estranho, algo que não conseguia explicar nem definir. Tentou dizer aos pais que havia algo de errado ali, mas foi ignorada. Não passava de uma criança impressionável que, por certo, se tinha deixado influenciar pela data. Pelo menos, foi o que eles acharam...
Três anos depois da sua última visita, a casa estava exatamente igual como quando a deixara. Parecia que o tempo tinha parado. A velha lareira com alguns troncos meio ardidos, os sofás com um padrão antigo, às flores, a jarra lascada em cima da mesa de jantar... tudo permanecia igual.
Decidida a enfrentar os seus medos, Sara, nervosa, subiu ao primeiro andar. Parou primeiro no quarto dos pais. Sentada na cama, pegou no retrato do pai que estava em cima da mesa de cabeceira e, de novo, chorou. Chorou baixinho porque não queria acordar as forças que poderiam permanecer naquela casa. Ao fundo do corredor, ao lado da casa de banho, ficava o seu quarto, o local mais aterrador da velha casa. A mãe fizera questão de manter tudo igual: a mesma colcha cor-de-rosa, as mesmas almofadas bordadas, as mesmas bonecas com sorrisos mecânicos em cima da cómoda e do armário.
Estranhamente, começou a sentir-se sonolenta. Em vão tentava combater o sono, mas uma vontade de se deitar e adormecer invadira-a de modo tão arrebatador que, em poucos segundos, adormeceu, vestida, em cima da colcha cor-de-rosa que a mãe recebera como prenda de casamento há trinta anos.
Logo começou a sonhar. Era o mesmo sonho de sempre. Caminhava descalça e distraída por um terreno abandonado. O seu vestido, branco e aéreo, esvoaçava, empurrado pela brisa. À sua volta não conseguia vislumbrar casas, nem sequer árvores ou pedras. O pó que se sentia no ar era espesso e começava a invadir-lhe o nariz e os pulmões. Parecia que caminhava por um imenso deserto, sem princípio nem fim. Lá ao longe, uma montanha surgiu, imponente e solitária e, sobre ela, um bando de aves necrófagas aguardavam a morte de uma vítima para se banquetearem da sua carne putrefacta e dos seus ossos. Sara arrepiou-se, mas continuou a caminhar, numa espécie de transe ou sonambulismo que não conseguia combater. Subitamente, sob os pés, a terra pareceu ficar mais macia e começou a engoli-la devagar. Em vão tentava soltar-se e continuar a caminhada, mas quanto mais se debatia, mas a terra a ia engolindo. Em segundos, ficou completamente coberta de areia e terra seca. Aspirou a maior quantidade de oxigénio que conseguiu antes de ficar soterrada. A terra entrava-lhe pelo nariz, pelos ouvidos e pelos olhos. Sentia que o corpo inteiro se enchia de areia, como uma velha ampulheta, e parou de respirar. Inutilmente se debatia, mas os braços e as pernas já não conseguiam mexer-se e sentiu que o espírito abandonava, finalmente, o seu corpo...
Acordou sobressaltada e a transpirar, fazendo um enorme esforço para regular a respiração, que estava mais ofegante do que das outras vezes em que tivera o mesmo sonho. Tinha até a sensação de que alguém lhe cobrira a boca e o nariz porque sentia a pressão nos maxilares, mas isso era impossível! Não havia mais ninguém na casa e já não era a criança sensível e facilmente sugestionável que era.
Decidiu tomar um banho de imersão para relaxar e descansar depois daquele dia tão difícil, sem dúvida o pior dia da sua vida. A água tépida e os sais que acrescentou ao banho acalmaram-na e fechou os olhos. Não se ouvia nada nem ninguém, o que era estranho. Nem um carro a passar, ou um cão a ladrar... e todos os vizinhos tinham, pelo menos um que guardava, com empenho e ruído, o lar. Àquela hora, o bairro devia estar infestado de crianças mascaradas a bater às portas e a pedir doces, mas não se ouvia rigorosamente nada, como se o mundo lá fora tivesse congelado no tempo ou ela estivesse noutra dimensão. Abriu novamente os olhos e foi aí que algo a puxou para debaixo de água. Com profunda dificuldade, tentava soltar-se daquela força invisível que parecia tomar conta de si com toda a energia que possuía. Procurava, a todo o custo, manter a cabeça fora de água, inspirando pequenos goles de oxigénio, mas era novamente puxada para debaixo de água. Debateu-se durante alguns segundos que mais pareceram horas infinitas. Finalmente, sentiu que o que quer que fosse que a segurava diminuía de intensidade e conseguiu, de um salto, sair da banheira. Caiu desamparada no chão gelado da casa de banho, com a respiração ofegante, nua e frágil. Vestiu o robe de banho e saiu daquela divisão a correr, encharcada, mas, quando entrou no quarto, escorregou, bateu com a cabeça no fundo da cama de ferro e desmaiou.
Recobrou os sentidos às três horas da madrugada. Levantou-se, a custo, ainda meio atordoada, e viu-se ao espelho. Com a pressa de fugir da casa de banho, não se secara e por isso os pés tinham deslizado no chão de mármore do seu quarto. Olhou-se ao espelho. Tinha um corte na testa e o sangue escorria, tapando-lhe a vista direita. Tinha de voltar à casa de banho, ao armário onde a mãe guardava os medicamentos e o estojo de primeiros socorros, mas a ideia aterrorizava-a.
A luz da casa de banho tinha ficado acesa, mas agora piscava, como se a lâmpada estivesse prestes a fundir-se. Decidiu dar meia volta, descer as escadas e procurar na cozinha um pano para limpar o sangue que, entretanto, já lhe chegara à boca. O sabor quente do sangue na língua provocou-lhe náuseas. Abriu uma gaveta, agarrou num pano de limpar a loiça e colocou-o sobre o ferimento para tentar estancar o sangue. Foi então que as gavetas começaram a abrir e a fechar freneticamente e alguns objetos começaram a saltar lá de dentro com a força dos movimentos, rápidos e regulares. O coração de Sara parecia que explodia e batia desenfreadamente. Toda ela tremia e a pele arrepiara-se de pavor. Então, da gaveta dos talheres começaram a saltar garfos, colheres, facas. Parecia que tudo a queria atingir. Em pânico, tentou correr para sair de casa o mais rapidamente possível, mas, ao virar-se, uma enorme faca cravou-se nas suas costas. A jovem foi projetada para a frente, contra o fogão e caiu ao chão, agonizante e a esvair-se em sangue.
Estava ainda consciente quando o chão da cozinha começou a engoli-la devagar, como naquele terrível sonho. Mortalmente ferida, sabia que já não poderia combater as forças ocultas que a queriam possuir desde que era criança. Neste instante, percebu, finalmente: era a casa! Sempre fora a casa! Queria mantê-la ali para sempre e aguardara, pacientemente, o seu regresso.
E o sonho... não era um sonho, mas uma profecia daquilo que a aguardava, daquele destino ao qual, embora tivesse tentado escapar, nunca conseguiria fugir. Ao sair de casa e mudar-se para o outro lado do país apenas atrasara o inevitável e a casa esperara o seu regresso para, finalmente, a poder manter consigo para sempre, fundida com o seu solo e as suas paredes.
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SOBRE
Sou escritora e também professora. Amo escrever e ensinar!